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Pedreiro mora há 11 anos dentro do cemitério de Marialva

Publicado em 28/06/2017 às 08:57

Maringá - Duas senhoras caminham pela rua principal do Cemitério Municipal de Marialva (a 172 quilômetros de Umuarama). Únicas visitantes no fim de tarde, cruzam túmulos para prestar homenagem a algum parente querido. Passam por oito mausoléus, todos bem cuidados, até que uma delas aponta para um mausoléu velho e com tinta descascada, medindo cerca de quatro metros de altura, dois e pouco de lateral e um metro de frente.

"Olha a janela daquela tumba, tá vendo?", pergunta uma das velhas.

"Que estranho", observa a outra. "Tem uma camiseta pendurada ali na janelinha."

De dentro do mausoléu, um vozeirão grave dispara uma frase inesperada:

"E o dono da camiseta tá aqui dentro!"

Aflitas e desesperadas, as velhas correm em direção à saída mais próxima. Correm tanto que não têm medo de tropeçar, não têm medo de enfartar, só têm pavor de dialogar com os mortos. Atordoadas, vão parar dentro do salão do Prever, a uns 600 metros de distância do ponto em que estavam, e são atendidas por funcionários atenciosos que oferecem copinhos de água com açúcar. Recompostas, as velhas descobrem que há um homem de 45 anos que há mais de uma década mora, sozinho, no mausoléu abandonado do cemitério.

"Tem um monte de gente que se assusta comigo", comenta Edson Carvalho, dando uma boa gargalhada e tragando, com prazer, um cigarro cedido pelo fotógrafo.

Residência polêmica

Todos os vivos, nas redondezas do cemitério, sabem das histórias do Edson. "Ele é gente boa, bacana, querido por todos", comenta a professora Maedani Moreira. "É um homem muito engraçado e inteligente. Sou amigão dele: a gente sempre toma umas pingas", gaba-se o caminhoneiro Adriano Tarelho.

Mas nem todos os vivos gostam da presença de Edson no meio dos mortos. O novo coordenador do cemitério, Alexandre Modesto, é um dos principais críticos dessa permanência inusitada. Desde que assumiu o cargo há seis meses, Modesto já autorizou duas notificações para que o morador abandonasse o jazigo – a primeira foi há vinte dias e a segunda, na semana passada. "O fiscal vai lá pela manhã e nunca encontra ele no mausoléu", diz, queixando-se que o inquilino é "baderneiro" e que aborda as pessoas, durante os enterros, para pedir dinheiro. As declarações de Modesto, porém, não batem com os relatos dos próprios funcionários do cemitério. "Edson não é baderneiro: é sossegado, na dele", comenta um colaborador que não quis ser identificado. 

"Nunca vi ele pedindo dinheiro em enterro", desmente outro colaborador, que também preferiu não ter o nome revelado.

Rotina de vivo

É até difícil acreditar que aquele sujeito, vestindo camiseta polo azul clara por baixo de uma blusa cinza e calça jeans azul e sapato marrom com respingos de tinta branca, reside dentro de um mausoléu.

Medindo um metro e setenta, magro, e com uma barba bem feita num dos quatro banheiros do cemitério - que ficam abertos 24 horas por dia -, Edson conta que veio parar no cemitério em 2006, depois que o local em que morava, um barraco de obra no bairro Novo Horizonte, foi atingido por um incêndio. "Perdi tudo o que tinha", diz ele sobre o RG, as roupas, o par de tênis, o colchão e uma coberta.

Com o incêndio, Edson passou a morar na rodoviária da cidade, debaixo de um carrinho de lanche que dava para uma escadaria. Era um lugar protegido da chuva e do frio, um esconderijo que não oferecia muitos riscos noturnos. "A gente dormia sempre ali: eu e o nado nego Dória. Mas daí vieram e tiraram a gente. De um dia pro outro, fiquei sem casa."

Sem teto, recebeu o convite de um ex-funcionário do cemitério para dormir, algumas noites, dentro de um dos banheiros do cemitério. Mas o plano não vingou.

"Acharam que eu podia assustar quem aparecia de manhã", lembra. Um amigo aconselhou, então, que dormisse, por uns dias, em um antigo mausoléu, provavelmente abandonado há muitos anos por uma família oriental. "Só que deixei uma coisa bem clara: se eu entrasse, não sairia mais dali", lembra.

E não saiu mesmo. Quando acorda pela manhã - o horário varia de acordo com os trabalhos temporários que arranja como pedreiro -, ele refaz os passos das duas velhas que assustou há muito tempo e entra no salão do Prever para tomar copinhos grátis de café. Faz quatro meses que Edson deixou de preparar seu próprio café, de forma rudimentar, no interior do mausoléu: o fogo atingiu sua garrafinha de álcool e deu início a um incêndio, rapidamente apagado por ele. "Foi perigoso. A coisa explodiu e quase me queimei."

Nascido em Jandaia do Sul, filho de uma dona de casa e de um funcionário público - ambos enterrados no cemitério de Sarandi -, Edson diz ter tido uma vida boa, sem problemas no relacionamento familiar, embora, hoje, ele não tenha muito contato com seus três irmãos: uma gerente de lotérica, que vive em Maringá, uma proprietária de um bazar, em Sarandi, e um colaborador de um açougue, de Marialva. "Não gosto de ficar pedindo ajuda, sabe? Meu irmão, volta e meia, me dá uma carne assada. A gente come por aí, divide com os amigos, toma uma pinguinha pra  acompanhar." 

O único casamento durou apenas sete meses. "Eu bebia um pouco, ela também. Não deu muito certo, não", comenta, sem saudosismo da vida conjugal.

Atualmente, Edson diz ter "um lance" com uma loira de trinta e poucos anos. Os encontros românticos são sempre na casa dela, jamais na dele. "Não sei se vai dar certo. Ela é muito controladora. A gente já brigou hoje cedo."

Peço que Edson me mostre seu cemitério. "O túmulo maior, lá embaixo, ó, eu que fiz", comenta, apontando para um bonito túmulo de azulejos marrons. "Cobro R$ 500. O pessoal costuma cobrar R$ 1.500."

Fetiche das tumbas

À noite, quando Marialva está dormindo, o cemitério ganha contornos eróticos e sensuais. Casais fetichistas, na calada da noite, pulam a mureta para realizar seus desejos, crentes de que as únicas testemunhas da luxúria são as almas enterradas. Não desconfiam que há um voyeur dentro de um dos mausoléus, acompanhando todos os detalhes picantes das relações. "Eu vejo tudo o que eles fazem", revela, com um jeitão sacana, orgulhoso de sua moradia privilegiada.

"Sabia que tem mulher que já quis me conhecer só para vim ver o cemitério?", comenta.

No sorriso, a pinta do grande galã que dorme com os mortos.

"Esses dias mesmo, conheci uma moça. Dezenove aninhos. Morena, pele clarinha. Daí peguei na mão, dei beijinho, e ela disse que eu tava diferente. À noite, partimos pro modão. No final, ela quis conhecer o cemitério. Quis saber como era, assim, entre os mortos. Se tinha assombração. Se tinha coisa diferente. Eu fui e mostrei tudo. Vou te contar, viu? Como ela gostou de dormir aquela noite comigo!", lembra.

Diante de seu mausoléu, Edson só não topa abrir as portas e revelar o interior. Conta que guarda, naquele pequeno espaço, o amontoado de sua vida: uma manta, algumas roupas, um par de sapatos. Sua postura é absolutamente compreensível. Talvez, esteja pouco à vontade em revelar sua casa a estranhos, já que nem teve tempo para arrumá-la. 

Na despedida, antes de pedir um quarto cigarro e mais R$ 2, faz questão de exaltar o carinho pela sua residência. "Aqui não tem assombração, não tem fantasma, aqui é meu lugar. Se tentarem me tirar, precisam me dar uma casa", avisa.

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